Variações do medo

Todas as noites
Num útero seco maternal
Tenho uma mãe
A chorar nos meus olhos
Caudal de lágrimas sanguíneas
A escorrer dos ventrículos cerebrais
Pérolas de sangue e um poema a ardejar
Sentimental
De inquietação
Dores dorsais
Da imaginação
E um frio medular
Um suor de liquor
Uma linfa de cetim
A cobrir a nudez dos versos sem fim
E um sorriso de silencio a latejar
Ruborizada palidez das palavras
Um medo embrulhado no peito
Da noite a querer estender se a meu lado
Na cama vazia do leito
Um olhar velado e pó
Gemem os ossos com o peso dos lençóis
Tange da noite escura a mó
Quase um travo de loucura a florir
E as mantas presas na pele do sentir
Lançam dos sonhos demoníacos anzóis
O sono agre e fel da ferida
Atemoriza em variações amedrontadas da estrofe das dores
Ja tive melhores dias
Há males menores pelo bem das flores
Agora agonizo na sombra sonolenta da vida
Resta-me esperar
Quase de partida
As horas fugidias
Que não soube agarrar
...
musa

Poema a uma manhã de amor

Só
Esta manhã despi a pele
Do teu corpo impregnado
No meu cheio de ti
O banho higiénico
Do amanhecer deslumbrado
Levou te aos oceanos
Escorreu um rio de mel
Nos socalcos lembrança
Adivinhando a tua infância
Pelo canto do olhar demorado
Em tanto amor que senti
Devaneio cénico
Momentos estranhos
Instantes de paixão
E nada perdi
Debaixo do chuveiro a imaginação
Havia ainda a escorrer
A furtiva lágrima com que me despedi
E as pernas a tremer
Desse amor feito
De tanto prazer
E a bater no meu peito
A saudade e o desejo
Despido o tempo imperfeito
Verbos por florir
E o beijo
E sabes meu amor
Pode a água da chuva dos rios do mar
Lavar todas as lágrimas que eu possa chorar
A pele dos sentidos sempre que me despedir
O teu cheiro no meu corpo inteiro
Na minha boca nas minhas mãos no meu olhar
Até o despido cansaço
Apenas deixar
O teu abraço
Aqui
E vou vestir me todos os dias de ti
…

musa
Um homem ao sol

Um homem caminha só
Por entre o fogo do entardecer
A maresia baila no pó
Há um grito a ensurdecer
A magia da tarde aquecida
Finge a claridade da vida
Talvez haja cidades a amanhecer
Entre o sol e o mar perdida
Corais de esmeraldas acesas nos cruzamentos
Jardins de rubras rosas a fenecer
Nas esquinas parados sois a estremecer
Crepusculares deslumbramentos
No olhar do homem ao sol da escuridão
A clara luz do encantamento
Faz o caminho da solidão
Nas pedras pisadas do pensamento
Ao horizonte desconhecido
Vibra o instante do sentido
Há um pôr do sol no firmamento

Meu mar és tu
Toda a rebeldia do abraço das ondas
Em fúria incontida de lençóis de espuma
No calor da tua mão onde queres me escondas
Sobram as vagas tombadas uma a uma
No largo mar do meu olhar Meu mar és tu
Manso abraço de imensa brancura
Envolves-me de sossego e espanto
E deixas o vento enlaçar-me de ternura
E a maresia fazer-se nos meus olhos pranto
Quanto do teu regaço é meu mar de loucura
E deixo-me nas tuas mãos como te quero tanto
Meu mar és tu
Que as ondas se soltem em abraços do vento
Se elevem aos céus hasteadas velas de pano-cru
Cruzados nossos olhos em marés sem tempo
Num abraço intenso mastros do pensamento
Navegando o silêncio do sentimento
Sentindo o mar que és tu
Azul momento …
Lar de papelão
Há calor num abraço de papelão
Há calor num colo de papel
Se eu te disser que há aconchego
Numa cama de chão
Feita de desassossego e fel
Feita de inquietação e medo
Que há sossego num lar de vão de escada
Que há uma família na rua partilhada
Tu não vais acreditar
E vais pensar
Pobre mendigo de rua
Tao pobre que não tem nada
Pobre o que está a passar
Tem por companhia a noite e a lua
Mendiga o calor das estrelas fulgentes
Aconchega-se nas folhas de papel quentes
Mas na sua alma tão frias
E as suas noites tão vazias
E de dia?
Dias frios e dormentes
Para onde vai ele mendigar?
Há solidão sem fingimento
Em seus olhos tristes arrependimento
Há uma emoção escondida
Uma partilha de vida
Um descontentamento
Uma vida por contar
A quantos mendigos de rua
Conheces tu o brilho do seu olhar? ...
Abraço-vos
Hoje tive um abraço do tamanho do mundo
Daqueles que dão a volta ao universo
Apertado quente profundo
Tão sentido como um verso
Hoje alguém veio abraçar-me
Enlaçou os braços a minha volta estreitando-me
Colou o rosto dele no meu e a boca beijando-me
Afundou em mim duas gotas de orvalho a olhar-me
Hoje alguém trouxe um abraço de longe de algum lugar
Abraçou-me com vontade de me ter e sentir
Trazia ternura carinho saudade amor no olhar
E deixou lágrimas quando o vi partir
Hoje talvez seja o dia dos abraços
Mas houve tanta loucura entre os dois
Partilhamos palavras olhares e cansaços
E num abraço dissemos até depois