Ana Barbara Santo Antonio




















Variações do medo


Todas as noites
Num útero seco maternal 
Tenho uma mãe
A chorar nos meus olhos
Caudal de lágrimas sanguíneas 
A escorrer dos ventrículos cerebrais
Pérolas de sangue e um poema a ardejar
Sentimental 
De inquietação
Dores dorsais
Da imaginação
E um frio medular
Um suor de liquor
Uma linfa de cetim
A cobrir a nudez dos versos sem fim
E um sorriso de silencio a latejar
Ruborizada palidez das palavras
Um medo embrulhado no peito
Da noite a querer estender se a meu lado
Na cama vazia do leito
Um olhar velado e pó
Gemem os ossos com o peso dos lençóis
Tange da noite escura a mó
Quase um travo de loucura a florir
E as mantas presas na pele do sentir
Lançam dos sonhos demoníacos anzóis
O sono agre e fel da ferida
Atemoriza em variações amedrontadas da estrofe das dores
Ja tive melhores dias
Há males menores pelo bem das flores
Agora agonizo na sombra sonolenta da vida
Resta-me esperar
Quase de partida
As horas fugidias
Que não soube agarrar
...

musa




Poema a uma manhã de amor




Esta manhã despi a pele 
Do teu corpo impregnado
No meu cheio de ti
O banho higiénico
Do amanhecer deslumbrado
Levou te aos oceanos
Escorreu um rio de mel
Nos socalcos lembrança
Adivinhando a tua infância 
Pelo canto do olhar demorado
Em tanto amor que senti
Devaneio cénico
Momentos estranhos
Instantes de paixão
E nada perdi
Debaixo do chuveiro a imaginação 
Havia ainda a escorrer
A furtiva lágrima com que me despedi
E as pernas a tremer
Desse amor feito
De tanto prazer
E a bater no meu peito
A saudade e o desejo
Despido o tempo imperfeito
Verbos por florir
E o beijo
E sabes meu amor
Pode a água da chuva dos rios do mar
Lavar todas as lágrimas que eu possa chorar
A pele dos sentidos sempre que me despedir
O teu cheiro no meu corpo inteiro
Na minha boca nas minhas mãos no meu olhar
Até o despido cansaço
Apenas deixar
O teu abraço
Aqui
E vou vestir me todos os dias de ti



musa


Um homem ao sol



Um homem caminha só
Por entre o fogo do entardecer
A maresia baila no pó
Há um grito a ensurdecer
A magia da tarde aquecida
Finge a claridade da vida
Talvez haja cidades a amanhecer
Entre o sol e o mar perdida
Corais de esmeraldas acesas nos cruzamentos
Jardins de rubras rosas a fenecer
Nas esquinas parados sois a estremecer
Crepusculares deslumbramentos
No olhar do homem ao sol da escuridão
A clara luz do encantamento
Faz o caminho da solidão
Nas pedras pisadas do pensamento
Ao horizonte desconhecido
Vibra o instante do sentido
Há um pôr do sol no firmamento





Meu mar és tu
 Toda a rebeldia do abraço das ondas 
Em fúria incontida de lençóis de espuma 
No calor da tua mão onde queres me escondas 
Sobram as vagas tombadas uma a uma 
No largo mar do meu olhar Meu mar és tu 
Manso abraço de imensa brancura 
Envolves-me de sossego e espanto 
E deixas o vento enlaçar-me de ternura 
E a maresia fazer-se nos meus olhos pranto 
Quanto do teu regaço é meu mar de loucura 
E deixo-me nas tuas mãos como te quero tanto 
Meu mar és tu 
Que as ondas se soltem em abraços do vento 
Se elevem aos céus hasteadas velas de pano-cru 
Cruzados nossos olhos em marés sem tempo 
Num abraço intenso mastros do pensamento 
Navegando o silêncio do sentimento 
Sentindo o mar que és tu 
Azul momento …








Lar de papelão
Há calor num abraço de papelão 
Há calor num colo de papel 
Se eu te disser que há aconchego 
Numa cama de chão 
Feita de desassossego e fel 
Feita de inquietação e medo 
Que há sossego num lar de vão de escada 
Que há uma família na rua partilhada 
Tu não vais acreditar 
E vais pensar 
Pobre mendigo de rua 
Tao pobre que não tem nada 
Pobre o que está a passar 
Tem por companhia a noite e a lua 
Mendiga o calor das estrelas fulgentes 
Aconchega-se nas folhas de papel quentes 
Mas na sua alma tão frias 
E as suas noites tão vazias 
E de dia? 
Dias frios e dormentes 
Para onde vai ele mendigar? 
Há solidão sem fingimento 
Em seus olhos tristes arrependimento 
Há uma emoção escondida 
Uma partilha de vida 
Um descontentamento 
Uma vida por contar 
A quantos mendigos de rua 
Conheces tu o brilho do seu olhar? ... 









Abraço-vos
Hoje tive um abraço do tamanho do mundo
Daqueles que dão a volta ao universo
Apertado quente profundo
Tão sentido como um verso

Hoje alguém veio abraçar-me
Enlaçou os braços a minha volta estreitando-me
Colou o rosto dele no meu e a boca beijando-me
Afundou em mim duas gotas de orvalho a olhar-me

Hoje alguém trouxe um abraço de longe de algum lugar
Abraçou-me com vontade de me ter e sentir
Trazia ternura carinho saudade amor no olhar
E deixou lágrimas quando o vi partir

Hoje talvez seja o dia dos abraços
Mas houve tanta loucura entre os dois
Partilhamos palavras olhares e cansaços
E num abraço dissemos até depois