Raquel Naveira



















Campestre


Há um grilo que brilha
Agarrado à folha
E uma estrela que canta
Presa na mata.

Há um orvalho que escorre
E morre na grama.
Ha uma rosa que perfuma
E penetra na cama.

Há pessoas que falam,
Ao redor de luzes esparsas,
As faces imersas na cor do fogo,
Um jogo de cartas...

Ha louças recostadas, na pedra,
Plantas amontoadas nas janelas,
Panelas magicas nas paredes,
Estranhos doces em gamelas...

Ha silêncios que preparam auroras,
Preces que desfiam as horas,
Medos de bichos e caaporas.

Ha tanta paz.
Tanta paz onde moras.









Mortos na floresta


Há um momento
Em que contabilizamos os mortos:
Avós,
Tios,
Tios-avós,
Uma geração,
Aí, nós os enterramos na floresta,
Meio corroídos de ácido,
Deformados pela velhice
E passamos um trator sobre as ossadas.

Depois, passeamos pela terra arada,
Empapada da sangue,
O vento soprando
Nas árvores esquálidas
Que soltam cinzas.









Carvoarias
 


Galopa o rio entre ribas altas, 
Com suas águas barrentas, 
Um rio pardo 
Como um cavalo castanho 
De crinas e reflexos amarelos.

Ao redor do rio,
Pelo cerrado,
As carvoarias queimam,
Ardem
Dia e noite,
Madeira,
Lenha,
Eucalipto,
Tudo é jogado nas fornalhas 
Que cospem carvões, 
Sólidos cubos negros, 
Tições de brasa extinta.

Bocas vorazes 
Soltam cinzas, 
Rolos de fumaça 
No céu carvoento, 
Coalhado de aves negras.

Os carvoeiros
Têm carcaças corroídas,
Consumidas no fogo,
Esquálidos esqueletos
De homens e meninos raquíticos
Que carvoejam
E se encarquilham
No calor do forno.
Caminhões passam carregados
E todos os seres viventes,
Árvores e gente,
Parecem restos carbonizados
Resistindo ás labaredas comburentes.







Pantanais
 


Quem poderá esquecer esses carandazais,
Que abanam com seus leques o rio Paraguai?

Quem poderá esquecer esses canais
Que se abrem entre camalotes e lodaçais?

Quem poderá esquecer esses pantanais
Que trazem surpresas de plantas e animais?

Quem poderá esquecer esses navios estivais,
Que descem o rio ao som de cantigas natais?

Quem poderá esquecer as terras brancas, minerais,
Onde os passos rangem deixando sinais?

Quem, estando longe ou perto,
Poderá esquecer o que não se esquece jamais?








Verônica


Estava na rua quando ele passou:
A capa púrpura,
A coroa de espinhos,
O lenho sobre os ombros;
Descontrolada,
Chorei por ele,
Por mim,
Por meus filhos;
Corri soluçando entre o povo
Que cuspia,
Vociferava,
Injetados de raiva e sangue;
Aproximei-me dele,
Nas mãos um pedaço de linho
Que teci na primavera,
Nossos olhares se cruzaram
E o dele era uma campina azul,
Um oceano liso,
Um friso de luz;
Enxuguei o suor de seu rosto
Que, por um instante,
Apoiei com os dedos;
Qual não foi minha surpresa
Ao perceber naqueles traços vermelhos,
Impressos no pano,
A sua santa fisionomia!
Esta história é verdadeira,
A imagem é verdadeira,
"Vera icon".









Lembrança do rio
 

Da janela da cozinha
Eu via
O rio
Ou era o rio que me espiava,
Espichando o dorso de lama,
Cobra
De couro liso.

Enquanto lavava louça,
O rio,
Escorregadio,
Levava nas águas sem espuma,
Os meus desejos,
Sentimentos
E desvios.

De vez em quando,
Desprendia-se da árvore
Um bugio,
O rio tremia,
A pele eriçada
Num calafrio.

Eu via
E pensava:
Sou moça,
Não vou morrer
Se me atiro
Nesse rio;
Não há dor,
Queimadura,
Lamento
Que ele não cure,
O seu balbucio
É paz e esquecimento.

Ó substância úmida!
Ó existência precária!
Meu corpo escoa
Como água
Como se fosse
Meu próprio rio.



















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